QUINTA-FEIRA, 22 DE JANEIRO DE 2009
A Bíblia pinta o quadro da Criação e da Queda de forma simples e direta (o primeiro verso de Gênesis diz: “No princípio, criou Deus os céus e a terra”). E se os primeiros capítulos de Gênesis fossem aceitos como relato histórico fidedigno, muitas dúvidas a respeito dos efeitos da maldade sobre o mundo e mesmo sobre o caráter de Deus seriam desfeitas. Afinal, como explicar a existência da morte, das doenças, das tragédias, da violência e de todas as mazelas que parecem fazer parte inerente da humanidade? Como aceitar que um Deus de amor crie flores e também espinhos? Como aceitar que, para sobreviver, animais tenham que se alimentar uns dos outros? Teriam a cadeia alimentar e a morte sido criadas como elementos constitutivos normais da criação de Deus? Difícil aceitar essas contradições e fácil entender por que muitos acabam enveredando pelos caminhos do ceticismo e do ateísmo.
Mas por que será que essa resistência quanto à historicidade do livro bíblico de Gênesis tem se intensificado cada vez mais? É comum ver livros, artigos, filmes e estudiosos de diversas áreas – inclusive teólogos – apresentando o relato da Criação como uma alegoria ou “conto da carochinha”. Na verdade, o inimigo de Deus vem preparando o terreno para isso faz muito tempo. E começou com os chamados mitos de criação.
Quando os relatos de culturas antigas a respeito da criação do mundo são analisados, logo de início se pode perceber a diferença entre eles e o texto bíblico sobre as origens. Note alguns deles:
Após Anu ter criado os céus,
E os céus terem criado a terra,
E a terra ter criado os rios,
E os rios terem criado os canais,
E os canais terem criado o pântano,
E o pântano ter criado o verme,
O verme procurou Shamash chorando,
Suas lágrimas se derramando diante de Ea:
“O que me darás como comida,
O que me darás para beber?”
“Eu te darei o figo seco
E o damasco.”
“O que representam eles para mim? O figo seco
E o damasco!
Eleve-me, e entre os dentes
E as gengivas deixe-me morar!...”
Por teres dito isto, ó verme,
Possa Ea destruir-te com a força da
Sua mão!
Esse texto faz parte de um encantamento contra o verme que os assírios de 1000 a.C. imaginavam que provocava a dor de dente. Ele começa com a origem do Universo e termina com a “cura” da dor de dente.
Agora leia estes outros:
“O que são vocês? De onde vieram? Nunca vi algo como você.” O criador Raven olhou para o homem e ficou... surpreso em descobrir que aquele novo ser estranho era muito parecido com ele. – Mito esquimó da criação.
Na Arean estava sozinho no espaço como uma nuvem que flutua no nada. Não dormia porque não havia sono, não estava faminto porque não havia fome. Assim permaneceu por muito tempo, até que veio um pensamento à sua mente. Disse a si mesmo: “Eu farei uma coisa.” – Mito do Maiana, Ilhas Gilbert.
Primeiro havia o grande ovo cósmico; dentro do ovo era o caos, e flutuando no caos estava P’an Ku, o Não Desenvolvido, o divino Embrião. E P’an Ku brotou do ovo, quatro vezes maior do que qualquer homem de hoje, com um martelo e um cinzel em suas mãos, com os quais moldou o mundo. – Mito de P’an Ku, China (por volta do século 3).
A criação do mundo não terminou até que P’an Ku morreu. Somente sua morte pôde aperfeiçoar o Universo: de seu crânio surgiu a abóbada do firmamento, e de sua pele a terra que cobre os campos; de seus ossos vieram as pedras, de seu sangue, os rios e os oceanos; de seu cabelo veio toda a vegetação. Sua respiração se transformou em vento, sua voz, em trovão; seu olho direito se transformou na Lua, seu olho esquerdo, no Sol. De sua saliva e suor veio a chuva. E dos vermes que cobriam seu corpo surgiu a humanidade. – Ibidem.
Embora seja um erro usar valores e símbolos de nossa própria cultura na interpretação de mitos de outras culturas, há detalhes que se repetem nos diversos mitos e que são impossíveis de se passar por alto. Invariavelmente os mitos fazem referência a deidades limitadas, que por vezes não sabem exatamente o que fazem, criam as coisas por acidente ou até morrem. Noutros casos, os deuses são violentos, vingativos e cheios de paixão (como os deuses do panteão grego, por exemplo). Há mitos que mencionam animais falando por si sós e coisas inanimadas dando origem espontaneamente à vida, isso quando a própria natureza, ou elementos dela, não são divinizados.
Sem querer fazer uma análise do ponto de vista da antropologia cultural (deixemos isso para os antropólogos), quero apenas ressaltar que, à medida que o tempo passava e as comunidades humanas se espalhavam a partir do ponto de origem, os relatos a respeito da Criação iam tomando contornos próprios e incorporando elementos que, comparados ao relato bíblico, soam bastante estranhos. (Embora praticamente todos os mitos concordem num ponto: o Universo teve um início.) [Continua...]
Michelson Borges
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