SEXTA-FEIRA, JUNHO 24, 2011
Em resposta à postagem “O Novo Testamento é historicamente confiável”, R. escreveu o seguinte comentário: “Eu diria que o Novo Testamento [NT] contém uma história que é verdadeira que, certamente, deve ter sido recebida oralmente pelos autores anônimos dos Evangelhos e de Atos que não se identificaram naquelas formidáveis obras. Porém, na elaboração de uma exegese sincera e honesta, torna-se indispensável questionar as modificações que foram feitas no texto e a possibilidade de que estejamos lendo algo que já passou por várias penas. E, já no século 19, teólogos alemães foram capazes de levantar consideráveis questionamentos. Logo, é de se concluir que o texto sofreu suas contaminações, mas que, certamente, não impedem uma compreensão da obra de Jesus, Seus profundos ensinamentos e do significado da Mensagem. E aí falo de uma compreensão que talvez nem dependa tanto da exegese ou da hermenêutica, o que torna a Palavra acessível a todo homem, não importando seu nível de instrução. Talvez pela história e pelo estudo de uma literatura judaica comparada possamos decifrar um pouco desse instigante quebra-cabeça - os Evangelhos - e assim conhecermos mais alguns detalhes sobre aspectos do judeu Yeshua ben Yosef que viveu nas três primeiras décadas do século 1º. [...] Finalizo este comentário dizendo que a contestação da autoria dos Evangelhos e de Atos é o que melhor explica as inegáveis contradições mesmo entre os sinóticos que parecem se basear no livro atribuído a Marcos e numa fonte comum a Mateus e Lucas que os estudiosos chamam de fonte ‘Q’. Hoje em dia, se alimentarmos a ideia católica de que foram os tais apóstolos e discípulos que teriam escrito os textos gregos dos quatro evangelhos, corre-se o risco de causar mais ainda conflitos entre os neófitos que seguem a fé e podem ficar perplexos com uma eventual descoberta de que a realidade é diferente daquela que se ensina na Igreja.”
Resposta:
Em conversa com o Dr. Rodrigo Silva, ele teceu o seguinte breve comentário:
Percebo que R. é bastante influenciado por Bart Erhman e pela nova escola do Jesus Seminar, especialmente representada por John Dominic Crossan. O autor trabalha com pressupostos que não foram provados. São uma verdadeira “petição de princípio”. Exemplo: que os evangelhos são anônimos ou que são produtos tardios posteriores ao ano 1970 (embora esse último argumento não apareça explicitamente no comentário). Ele também parece compartilhar algo da escola hermenêutica de Paul Ricoeur, a saber, o estruturalismo que advoga que o importante é a mensagem mais profunda do texto, que não é necessariamente a original (pois essa teria se perdido), mas aquela que resulta da subjetividade do autor moderno que lê e interpreta o texto ao seu próprio entendimento (um critério essencialmente pós-moderno). Pois bem, vamos a alguns pontos:
1. Evangelhos Anônimos? Esse é um erro de anacronismo cometido por muitos estudiosos modernos, especialmente aqueles moldados pela filosofia de Foucault. As ideias de propriedade intelectual de hoje não eram as mesmas daquele tempo. Fala-se muito que os evangelhos são produções da comunidade mateana (isso é, a comunidade fundada por Mateus que produziu um texto e o atribuiu artificialmente à pessoa dele). Outros dizem que foram os teólogos que o fizeram posteriormente. Bem, curiosamente o próprio Martin Hegel, que era um expoente da escola liberal de Tübingen, admitiu em seu comentário a Marcos que não existe a menor evidência histórica de que os evangelhos circularam anônimos originalmente sem nenhuma referência a quem os escreveu. Veja, se os autores fossem “anexados” posteriormente por razões políticas ou teológicas, os leitores não deveriam escolher nem Lucas nem Marcos, pois estes não figuravam entre os apóstolos, e Mateus, embora fosse apóstolo, era ex-coletor de impostos quase sem proeminência entre os doze. Tiago (irmão de João) e Pedro seriam personagens muito mais apropriados. Ademais, não é só a Bíblia que padece desse “aparente” estado de anonimato autoral, outros livros da antiguidade também estão sem qualquer referência ao autor ou editor final. Às vezes, aparece apenas o nome do copista/escriba ou do proprietário do manuscrito. Contudo, antigos índices como um catálogo de textos e autores encontrado na Biblioteca de Assurbanipal demonstram que o povo tinha conhecimento dos autores ainda que seus nomes não viessem explicitamente no texto. Aliás, essa certeza aumentou muito no período greco-romano, especialmente depois da construção da Biblioteca de Alexandria. O Talmude, por exemplo, afirma que a comunidade sabia quem eram os principais autores das Escrituras judaicas. O mesmo se dá com a literatura grega e, também, com a literatura romana. Na Antiguidade, portanto, na maioria das vezes, o autor não tinha seu nome dentro do livro, mas no sillybos ou sittybos – uma etiqueta em forma de couro ou papiro que ficava colada na haste do rolo ou aplicada em seu verso à vista do vendedor ou leitor. Temos exemplares de sillybos datados até do 3º século. Mas muitos, é claro, se perderam. Era nessas etiquetas que vinha o nome do autor. Logo, não devemos nos surpreender de o nome do evangelista não constar necessariamente no texto do livro, como muitos supõem que deveria ser.
2. As contradições que os evangelhos possuem são reais, porém periféricas. Na essência, os textos se igualam e se complementam. Mas veja, esse é mais um indício de que as alegadas alterações posteriores, se houve isso, não mudaram substancialmente as cópias, pois se o tivessem feito, as correções editoriais da Igreja Católica terminariam pondo fim a todas as discrepâncias textuais e corrigido tudo o que poderia gerar conflito com a doutrina oficial. Importantes doutrinas católicas como o purgatório, a assunção e intercessão de Maria, a confissão auricular, as indulgências, a guarda do domingo, etc. carecem de clara base bíblica. Ora, se o Novo Testamento houvesse sido excessivamente manipulado por escribas católicos, essas doutrinas tão importantes seriam obrigatoriamente incorporadas ao texto como sendo ensinamentos oriundos do próprio Cristo. Como não estão, sou obrigado a supor que por uma proteção divina o texto não foi dramaticamente alterado. O que não significa que ignoro as pequenas incongruências das cópias, mas afirmo: não são essenciais, não alteram substancialmente o conteúdo original. Isso sem contar os argumentos técnicos da crítica textual que, por questões de espaço, não vou citar aqui.
(Dr. Rodrigo P. Silva, professor de Teologia no Unasp)
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