domingo, 23 de outubro de 2011

A tumba vazia



QUINTA-FEIRA, MARÇO 22, 2007
Lançar livros e produzir filmes sobre teorias que apresentam um Jesus Cristo diferente do relato bíblico já virou moda. A última tentativa foi um documentário produzido pelo aclamado diretor do Titanic, James Cameron, exibido no Brasil no último dia 18 de março, num canal de TV a cabo. A obra sugere, semelhantemente às polêmicas anteriores, que Jesus teria se casado com Maria Madalena e tido um filho com ela, por nome Judas. O documentário conta com a direção também do cineasta Simcha Jacobovici, que no ano passado veiculou um programa sobre as possíveis provas do Êxodo bíblico. O site do canal que exibiu o documentário diz que o programa se baseia em pesquisas arqueológicas, ciência forense, análise de DNA e estatísticas. Entrevistamos o professor de Arqueologia Bíblica da Faculdade Adventista da Bahia, que recentemente concluiu o seu Ph.D. em Arqueologia Clássica pela Universidade do Texas, em Austin (EUA). O professor Milton justifica por que vê esse documentário como mais uma produção sensacionalista sobre a biografia de Cristo, explica o bê-a-bá da Arqueologia Bíblica, e como essa ciência tem esclarecido a compreensão do relato bíblico.


No último fim de semana, foi veiculado um documentário sobre o suposto túmulo perdido da família de Jesus. Segundo os produtores do vídeo, a descoberta apontaria para um relacionamento amoroso entre Jesus e Maria Madalena, do qual teria nascido um filho. Por que estudiosos da área têm tachado essa teoria como sem fundamento?


Dr. Milton Torres - Há algumas razões muito fortes para se duvidar de que o assim chamado túmulo de Talpiot ou “Tumba da Família de Jesus” tenha, de fato, pertencido a Jesus e Sua família. Em primeiro lugar, a alegação dos responsáveis pelo documentário é de que uma análise estatística prova que a combinação de tantos nomes associados com o relato evangélico só seria possível caso a tumba pertencesse à família de Jesus ou a algum rico patrono que pudesse pagar pelo túmulo. Foram encontrados, no túmulo, os seguintes nomes: (1) “Jesus, filho de José”; (2) Mateus; (3) um apelido para o nome José; (4) Maria, em aramaico; (5) Mariane, em grego; e (6) “Judas, filho de Jesus”. A estatística é um procedimento válido e costumeiramente usado na arqueologia, mas fazer toda uma interpretação depender principalmente de suas quantificações é um processo arriscado.

O problema é que o nome de Jesus era tão comum em sua época que ele ocorre em 98 outras tumbas e 21 outros ossuários. Além disso, não há evidência alguma de que a Mariane identificada na tumba seja Maria Madalena, nem tampouco de que os seguidores de Jesus jamais o houvessem chamado de “Jesus, filho de José”. Seria muito improvável que os discípulos ou familiares de Jesus pusessem essa inscrição na tumba, desrespeitando, assim, sua memória, quando o próprio Jesus, diversas vezes, já havia se identificado como o “Filho de Deus”. 

É, além disso, bastante estranho que o escavador original da tumba, o Dr. Amos Kloner, professor da Universidade Bar-Ilam, em Jerusalém, não tenha chegado a conclusões semelhantes quando escavou a tumba pela primeira vez em 1980. O documentário sobre o suposto túmulo da família de Jesus parece mais um episódio do que se chama “arqueologia fantástica”, ou seja, atividade arqueológica empreendida por quem tem mais imaginação do que objetividade científica. Não admira que o documentário tenha sido produzido por James Cameron, diretor hollywoodiano acostumado à ficção de filmes como "Titanic", "Exterminador do Futuro", "Alien, o Oitavo Passageiro" e "Piranha", todos dirigidos por ele. 

A teoria por trás do documentário emana, de fato, de um livro gnóstico do século IV A.D., intitulado Atos de Filipe que apresenta os feitos apostólicos de Maria Madalena e seu relacionamento com Jesus. De acordo com Chris Rosebrough, há demasiadas especulações necessárias para que a proposta de Cameron seja verdadeira. O túmulo de Talpiot será a tumba da família de Jesus se e somente se: (1) Jesus for irmão de José; (2) Mariane for mesmo Maria Madalena; (3) Judas for filho de Jesus com Maria Madalena; e (4) Mateus for parente de Maria, mãe de Jesus, mas não seu filho. Além disso, para explicar a ausência dos restos mortais dos outros irmãos de Jesus, os produtores do documentário ressuscitam a já descartada hipótese de que o ossuário de Tiago seja, de fato, o ossuário pertencente ao irmão de Jesus conhecido por esse nome, mas que teria sido furtado da tumba quando esta foi escavada em 1980. O problema é que existe uma foto daquele ossuário, tirada em 1970, antes das escavações do túmulo de Talpiot. 

Além disso, acreditar na acuracidade de um documento gnóstico do século IV, que identifica Maria Madalena com Mariane, em detrimento do relato bíblico contemporâneo ao sepultamento de Jesus não parece muito razoável, especialmente quando esse documento gnóstico descreve que Mariane gostava de pregar o evangelho para os animais, tendo sido responsável pela conversão de um bode falante e pela morte de um dragão. Finalmente, os peritos ainda levantam dúvidas quanto à presença do nome de Jesus na tumba. As letras não são claras e, por isso, há uma proposta alternativa de que o nome seja Hanum e não Jesus.

Quando se trata da validade histórica da Bíblia, costuma-se recorrer às descobertas arqueológicas. Quais são as grandes contribuições que essa ciência tem dado para a confirmação do relato bíblico?

Dr. Torres - A arqueologia tem iluminado o texto bíblico de diversas formas, algumas delas até surpreendentes. A descoberta do evangelho de Judas e dos textos da Biblioteca de Nadi Hammadi, por exemplo, foi importantíssima, pois os escritores do Novo Testamento demonstravam certa preocupação quanto à influência dos gnósticos sobre a comunidade cristã, mas nada tínhamos conservado dos escritos gnósticos. Encontrar textos escritos por pessoas daquela persuasão nos ajudou a ter uma idéia bem clara das razões por que os escritores do Novo Testamento estavam tão apreensivos em relação aos ensinamentos gnósticos. Outra descoberta fantástica ocorreu em 1845. O arqueólogo Henry Layard encontrou, na antiga cidade de Nínive, o assim chamado “Obelisco Negro de Salmaneser III”, um dos mais antigos artefatos arqueológicos a se referir a um personagem bíblico: o rei hebreu Jeú, que viveu cerca de nove séculos antes de Cristo. Este artefato encontra-se preservado, agora, no Museu Britânico, em Londres. Um artefato semelhante é o assim chamado “Prisma de Taylor”, um prisma hexagonal de argila queimada que faz referência à batalha travada entre Senaqueribe e o rei hebreu Ezequias, no início do século VII antes de Cristo, uma batalha tão importante que foi narrada em três lugares diferentes da Bíblia: 2 Reis 19, 2 Crônicas 32 e Isaías 37:38. Este artefato também se encontra depositado no Museu Britânico. 

O arqueólogo Walter Kaiser enumera as seguintes descobertas como sendo as dez mais importantes da arqueologia bíblica: 

1. Os amuletos de Ketef Hinnon, contendo o mais antigo texto do Antigo Testamento (séc. VII a.C.).

2. O Papiro John Rylands, contendo o mais antigo texto do Novo Testamento (125 A.D.). 

3. Os Manuscritos do Mar Morto. 

4. A pintura de Beni Hasan, revelando como era a cultura patriarcal 19 séculos antes de Cristo.

5. A estela de basalto de Dã, descoberta em 1993, que provou, sem sombra de dúvidas, a existência do rei Davi.

6. O tablete 11 do épico de Gilgamés, descoberto em 1872, por George Smith, que provou a antigüidade do relato do dilúvio. 

7. O tanque de Gibeão (mencionado em II Samuel 2:13 e Jeremias 41:12), descoberto em 1833, por Edward Robinson. 

8. O selo de Baruque, descoberto em 1975, provando a existência do secretário e confidente do profeta Jeremias. 

9. O palácio de Sargão II, rei da Assíria mencionado em Isaías 20:1, descoberto em 1843, por Paul Emile Botta, de cuja existência os historiadores seculares duvidavam até essa descoberta. 

10. O obelisco negro de Salmaneser.

Os arqueólogos pesquisam mais por motivação cientifica ou religiosa? O fato de um pesquisador ser religioso ou não, compromete o resultado do próprio estudo?

Dr. Torres - Independentemente de escavar ou não, nenhum arqueólogo pesquisa de forma totalmente objetiva. Quando ele sai para seu campo de trabalho, já tem uma boa idéia sobre o que quer achar. E isso é fator determinante para sua pesquisa. Por isso, arqueólogos capitalistas vão encontrar “provas” de economias bem ajustadas mesmo em épocas antigas. O fato de existir certa tendência para achar um tipo específico de “prova” não invalida, contudo, as contribuições da arqueologia, uma vez que tais descobertas precisam ser trazidas diante da comunidade acadêmica. Só quando há certo grau de consenso sobre o que uma descoberta significa é que isso é aceito pela comunidade como verdade. Há poucos anos, por exemplo, a descoberta de um suposto ossuário pertencente a Tiago, irmão de Jesus, causou entusiasmo em todo o mundo, mas logo se percebeu que se tratava de uma fraude. Ou seja, a comunidade arqueológica é suficientemente madura para detectar o que há por trás das intenções de arqueólogos que se deixam levar por sua ideologia.

Vamos voltar um pouco. O que é Arqueologia? 

Dr. Torres - A arqueologia é uma aventura. A arqueologia é curiosidade intelectual e uma forma de satisfazer essa curiosidade. A imaginação arqueológica foi refinada nos últimos duzentos anos de tal forma que hoje temos uma disciplina acadêmica com esse nome. A arqueologia é, de fato, a ciência que escava, cataloga, mede, descreve e analisa artefatos e objetos do passado. Segundo o arqueólogo Clive Gamble, descobrir uma tumba intocada é emocionante, porém mais importante do que isso é explorar nossa capacidade de pensar além das circunstâncias do quotidiano e absorver em nossa vida o conhecimento sobre os objetos e as atividades do homem em tempos passados.

Quando ela surgiu e se consolidou como área do conhecimento humano?

Dr. Torres - A arqueologia surgiu, a princípio, como um conjunto de crônicas escritas por homens excêntricos acerca de suas descobertas sobre o passado. Mas logo esses homens descobriram que era possível analisar o estilo dos artefatos e propor esquemas classificatórios para eles. Descobriram também que a estratigrafia, isto é, a disposição dos artefatos nas trincheiras cavadas para descobri-los, podia ser correlacionada com a idade relativa de cada artefato. Ou seja, um artefato descoberto no fundo da trincheira podia ser imaginado como sendo mais antigo do que um artefato descoberto pouco abaixo da superfície. Com isso, surgiram os primeiros métodos arqueológicos. Em 1819, Christian Thomsen propôs um sistema para classificar artefatos pré-históricos que ele distribuiu em três idades: idade da pedra, do bronze e do ferro. Assim, nasceu a arqueologia como ciência.

A Arqueologia Bíblica é uma especialidade dessa área. O que ela estuda?

Dr. Torres - A disciplina acadêmica da Arqueologia se subdivide em áreas que permitem ao especialista se concentrar em campos específicos de seu interesse. Assim, existem ramos da arqueologia como, por exemplo, a arqueologia antropológica, a arqueologia clássica (que se interessa pela Antigüidade greco-romana) e a arqueologia bíblica ou cristã. Essa distinção entre arqueologia bíblica e cristã é importante, pois os pesquisadores que se dizem arqueólogos bíblicos estão geralmente interessados em ver como essa ciência pode confirmar o relato bíblico, enquanto que o interesse da arqueologia cristã é desvendar a história do Cristianismo, independentemente de suas descobertas confirmarem ou não o relato bíblico.

Por que o Brasil não tem tradição no estudo da Arqueologia Bíblica? Quais são os grandes centros de pesquisa dessa ciência?

Dr. Torres - Acredito que o Brasil não seja um centro de estudos da arqueologia bíblica pela razão óbvia de não ser um país onde existam sítios arqueológicos relacionados com a Bíblia e porque, além disso, o Brasil não investe suficientemente na área acadêmica. Isto é, não temos tradição na área da arqueologia bíblica nem tampouco em outras áreas. É admirável ver um programa ativo de arqueologia em universidades como a USP, por exemplo, quando tão pouco incentivo há para isso no País. Por outro lado, os melhores programas de arqueologia bíblica são aqueles desenvolvidos por países do primeiro mundo, como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e França, e por países pertencentes às terras bíblicas, como Israel, Egito, Grécia e Itália, por exemplo.

O único museu de Arqueologia Bíblica da América Latina está localizado no Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp), na região de Campinas, SP. Qual é a importância dele para a popularização dessa área no Brasil?

Dr. Torres - Uma visita a um museu arqueológico é sempre uma experiência impactante. Já tive a oportunidade de visitar vários museus no mundo, sendo que quatro deles me encantaram: o Museu do Vaticano, o Museu Capitolino de Roma, o Museu Arqueológico de Atenas e o Museu Arqueológico da Universidade de Andrews nos Estados Unidos. É claro que existem museus maiores e mais sofisticados do que esses, mas o que me impressionou em tais museus foi a importância dos artefatos por eles conservados em relação à história da Igreja Cristã e do texto bíblico. No entanto, apesar de os museus serem tão úteis e necessários para a divulgação da história da arqueologia e da história da humanidade, deve-se conservar em mente que o melhor para a arqueologia é conservar os artefatos o mais próximo que for possível dos locais onde foram encontrados. Um artefato depositado em um museu nos dá um vislumbre do passado, mas um museu estabelecido perto de um sítio arqueológico nos revela dimensões extraordinárias do passado arqueológico. Infelizmente, porém, nem todos nós podemos viajar o mundo para conhecer esses artefatos. Daí a necessidade de termos também no Brasil um museu de arqueologia bíblica que supra essa deficiência.

Como se dá o trabalho do arqueólogo no campo de escavação, quais são as ferramentas usadas, os passos dados, e os cuidados tomados?

Dr. Torres - Nem todo arqueólogo escava. Se todo arqueólogo escavasse, o mudo seria, provavelmente, um buraco. Há arqueólogos que são especialistas em decifrar textos antigos, outros são especialistas em datar os artefatos. Há até arqueólogos cuja especialidade é o pólen (os assim chamados palinólogos), uma das mais úteis substâncias para a datação de sítios arqueológicos. Hoje, a principal preocupação dos arqueólogos é fazer descobertas sem a utilização de métodos invasivos de escavação. Um sítio arqueológico é um recurso não renovável. Isto é, uma vez escavado, perde muito de sua utilidade. Por isso, há certo interesse, hoje, em descobrir os artefatos no subsolo antes de escavar. Há aparelhos como o magnetrômetro, por exemplo, que nos possibilitam enxergar o subsolo e, assim, direcionar precisamente a escavação a fim de fazer o menor dano possível ao sítio arqueológico. No caso da escavação, primeiramente se obtém permissão das autoridades competentes, depois se faz um levantamento topográfico do sítio, então se marca a trincheira e, finalmente, se escava. No passado recente, as trincheiras eram marcadas sob a forma de grade, mas atualmente a preferência é marcar simplesmente um quadrado ou retângulo. A escavação é um processo delicado, pois ninguém quer danificar o artefato no processo de escavá-lo.

O que o levou a fazer doutorado nessa área?

Dr. Torres - O meu doutorado não é bem na área de arqueologia bíblica, mas arqueologia clássica; embora tenha tentado fazer um estudo interdisciplinar voltado tanto para a arqueologia de Roma e Grécia quanto para a arqueologia cristã. A motivação principal foi minha paixão pela língua em que foi escrito o Novo Testamento e meu desejo de ter um conhecimento de primeira mão da história da Igreja Cristã primitiva. Roma era a metrópole do mundo naquela época e exerceu profunda influência sobre o desenvolvimento do Cristianismo. Eu quis voltar no tempo, até o Império Romano, a fim de verificar em que sentidos esse poder secular exerceu impacto sobre a fé dos primeiros cristãos. Minha tese de doutorado diz respeito às razões por que a basílica, um edifício secular comumente usado pelos gregos e romanos muito antes da fundação do Cristianismo, foi adotada como principal edifício de culto dos cristãos. Minha hipótese é que esse edifício, ocasionalmente usado para os velórios dos romanos (inclusive o velório de Augusto, primeiro e mais famoso dos imperadores), foi, por isso, a escolha lógica da comunidade cristã, que aderira a uma religião considerada ilícita pelas autoridades romanas e que usava os sepultamentos de seus membros como uma desculpa para a realização de cultos religiosos. Além disso, havia muitas semelhanças entre a cerimônia fúnebre realizada pelo adepto das religiões tradicionais de Roma no âmbito do túmulo-casa romano e os velórios realizados pelos cristãos na basílica cemiterial, inclusive a propensão tanto de pagãos quanto de cristãos para a realização de banquetes fúnebres nesse contexto. A Igreja Cristã nasceu, em Roma, no contexto dos cemitérios, inclusive as catacumbas, nada mais apropriado do que escolher um edifício que lhe facilitasse as reuniões nesse ambiente.

Teria alguma escavação em especial que o marcou?

Dr. Torres - Participei de três escavações até hoje, todas como requisitos para a obtenção do Ph.D. em arqueologia clássica. A que mais me chamou a atenção foi a escavação de uma sinagoga, talvez pertencente ao primeiro século A.D., localizada em Ostia Antica, o antigo porto da cidade de Roma. De fato, não escavamos toda a sinagoga, que já havia sido escavada na década de 1960, mas fizemos sondagens em pontos estratégicos do solo da sinagoga a fim de confirmar algumas hipóteses levantadas pelo Dr. Michael White, professor de Arqueologia Cristã na Universidade do Texas em Austin e diretor do Institute for the Study of Antiquity and Christianity (ISAC). Como se tratava de um edifício de tamanho considerável, o grupo de arqueólogos foi dividido em equipes e coube a minha turma medir e desenhar o prédio à medida que o limpávamos e perfurávamos. Foi uma experiência fantástica.

(Wendel Lima, para o Paraná Online)

Para saber mais: conheça o site sobre o túmulo de Jesus no Instituto Arqueológico da América.

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