Grupos antitrinitarianos dissidentes do adventismo tem alegado que a
doutrina foi formulada no Concílio de
Nicéia(325 d.C.),sob influência do imperador romano Constantino.Entre os
vários ataques produzidos por movimentos antitrinitarianos está o argumento
histórico de que a Trindade é fruto do
Concílio de Nicéia e constitui,portanto um dogma de Constantino.Tal
alegação pode ser encontrada tanto em sites da Internet quanto nos materiais
publicados por grupos dissidentes do adventismo.Em matéria veiculada pelo site www.adventistas.com(que não é da Igreja
adventista)Ennis Meier declarou que
o Concílio de Nicéia deu origem à crença em três deuses.A crença na Trindade de
pessoas Divinas não teve origem na Bíblia,o primeiro concílio ecumênico da
história,no qual participaram 318 bispos
no ano 325 d.C da era cristã.Constantino não foi um Papa,mesmo que tenha
agido como líder da Igreja,nalgum momento nunca arvorou para si o título de Pontífex Maximus do
cristianismo.Ademais,o bispo de Roma não
possuía no quarto século o poder político absolutista que faria do papado a
maior autoridade no mundo ocidental.Logo,seria estranho vincular
Constantino como Pontífex Maximo.Há também outro site que promove ateísmo,outro
escritor que se denomina “irmão X”também
se valeu da contundente afirmação de que Constantino começa a criação da
Trindade.Ele ainda acrescenta que o voto dos bispos a favor da posição
trinitariana se deu por pressão do Imperador,que precisava do respaldo
conciliar.Ora,o estranho é que Constantino não se valia de votos para fazer
cumprir seus desígnios,apenas expedia um decreto(como o fez no edito de Milão e
no decreto dominical,07/03/321),e todos se sujeitavam.Por que
então,no caso da Trindade,dependeria do apoio episcopal da Igreja?Esta questão
não parece ter sido avaliada por nenhum dos artigos até agora apresentados.E no
site “irmão X” ele cita que foi no ano 325 que fora instituído a guarda do
domingo,ele comete um erro de natureza histórica ao vincular o domingo ao
Concílio de Nicéia-pois é sabido que o
decreto dominical de Constantino
data quatro anos antes do
Concílio(321 d.C),e sua conclusão deve ser bem analisada para ser bem
compreendida.Para ele,uma vez que Constantino convocou a reunião,conclui-se que
o mesmo homem que promulgou a primeira lei dominical foi o pai do dogma da
Trindade.O objetivo desse artigo,é avaliar a procedência histórica de tal
afirmação,ou seja,seria a Trindade um dogma de Constantino?Suas origens se
devem ao Concílio de Nicéia?Para responder a estas perguntas,é necessário que
percorramos aos escritos dos primeiros pensadores cristãos que viveram entre o
segundo e o terceiro século,isto é,imediatamente depois do período apostólico e
antes do Concílio de Nicéia.
USO
DO TERMO TRINDADE ANTES DE NICÉIA
Uma verificação no Index da Ante-Nicene Fathers e da Sources
Chrétiennes que formam a coleção de todos os escritores cristãos mais
antigos(inclusive os anteriores a Nicéia)nos mostra que muito antes do
Concílio,a crença na Trindade já havia sido sistematizada entre os
cristãos.Aliás,o próprio termo latino
Trindade foi usado em 212 d.C,por Tertuliano,113 anos antes de Nicéia!Falando
da Igreja de Deus,ele menciona o Espírito no qual está a Trindade de uma
Divindade:Pai,Filho e Espírito Santo(in
quo est trinitas unius diuinitaris,Pater ET Filius ET Spiritus sanctus).A
tradução latina da obra de Orígenes também menciona o termo ao considerar que o
batismo de salvação não está completo a não ser que seja exercida pela
autoridade da excelentíssima Trindade de todos eles,que é constituída do Pai,do
Filho e do Espírito Santo.Tal comentário
torna-se relevante se entendermos que,talvez já nesse tempo,houvesse alguma
controvérsia quanto à fórmula batismal e a genuinidade de Mateus 28:19.Teófilo
escrevendo quase meio século antes de Tertuliano
e Orígenes,usa a expressão “TriadoV”,que certamente seria uma equivalência
semântica de trinitas ou original em grego.Note a comparação poética que ele
usa ao relacionar a Trindade ao primeiro capítulo de Gênesis:Os três dias que
estão antes dos luminares(da criação)são tipos da Trindade(TriadoV)de
Deus.Levando-se em consideração que Teófilo fala de tipos da Trindade,é
razoável supor que ele não esteja falando de algo novo ou criando um neologismo(palavra,ou expressão nova).A
expressão textual supõe o uso de um termo já conhecido entre os
leitores.Logo,não seria estranho imaginar que o mesmo vocábulo aparecesse em
outros escritos do mesmo período que se encontram perdidos em nossos dias.Assim,retrocede para cerca de um século e
meio antes de Nicéia o uso técnico do termo Trindade,legitimamente reconhecido
na literatura cristã.Mas talvez alguém pergunte:Por que esse termo não
aparece na Bíblia?Para responder a esta questão é preciso compreender que a
partir do século segundo,o centro
missiológico da Igreja, transferiu-se em definitivo do ambiente judeu-palestino para o mundo
Greco-romano.A Igreja viu-se,então,obrigada a expressar sua fé de um modo compreensível para aqueles que não vinham
de uma cultura vétero-testamentária,mas tinham seu pensamento regido pelos
conceitos da filosofia grega.Questão ontológicas antes não sistematizadas
começaram a invadir os círculos cristãos,e deste modo,os escritores tiveram de
cunhar termos helenísticos para tornar inteligível a fé do Novo testamento.
CONCEITOS
PATRÍSTICOS SOBRE A TRINDADE
Clemente
de Roma,que viveu no fim do primeiro século,escreveu por volta do ano 96 d.C,uma
carta de conforto aos cristãos de Corinto,que estavam sendo perseguidos por
Domiciano.Ao falar da união da Igreja ele diz:”Não temos todos nós um único Deus e um único Cristo?E não há um único
Espírito da Graça derramado sobre nós?Embora este não seja um texto de
defesa da Trindade,chama-nos a atenção sua linguagem trinitariana que
subentende uma ideia triúna de Deus.Outros autores são mais claros em sua
exposição.Inácio(105 d.C),que foi o
segundo sucessor de Pedro como pastor em Antioquia,também ensinava a
doutrina da Trindade.Nessa época existiam pessoas ensinando doutrinas
contrárias à fé dos apóstolos,entre seus ensinos equivocados estaria a ideia de
que o Espírito Santo não existe e que o Pai,o Filho e o Espírito Santo seriam a
mesma pessoa.Justino,congnominado o
“Martir”,foi outro que escreveu várias apologias em favor do cristianismo e
contra a supremacia da filosofia grega.Num de seus textos,concluído por volta
de 160 d.C,ele diz:Já que somos
considerados ateus ,nós admitimos nosso ateísmo em relação a estes(vários tipos
de deuses do politeísmo),mas no que diz respeito ao verdadeiro Deus,o Pai da
Justiça e temperança,ao Filho e ao Espírito Profético (Santo),saibam que nós os
adoramos e reverenciamos.Atenágoras,também
respondendo à acusação de serem os cristãos chamados de ateus por não
aceitarem o politeísmo pagão,escreveu em 175 d.C:”Ora,quem não ficaria perplexo em ouvir chamar de ateus pessoas que
pregam de Deus o Pai,de Deus o Filho e do Espírito santo e que declaram
serem um no poder,mas distintos na ordem?Irineu
de Lion é outro importante autor deste período,convertido na adolescência,ele
foi discípulo de Policarpo,que por sua vez,foi discípulo do apóstolo
João.Sua principal obra,intitulada Contra Heresias”,dispõe de cinco volumes e
foi escrita por volta de 177 d.C.Respondendo às ideias gnósticas de seu
tempo,ele toma o cuidado de diferenciar,por exemplo,o fôlego (espírito)de vida
dados às criaturas em geral,do Espírito Santo,que é Deus habitando com o
crente.Hipólito(205 d.C),autor do mais
antigo comentário de Daniel de que dispomos,disse que a terra é movida por
estes três:”O Pai, o Filho e o Espírito
santo”.Noutra passagem,após citar a fórmula batismal em nome do Pai,do
filho e do Espírito Santo,ele demonstra
que já no seu tempo havia os que negavam esta doutrina,pois diz:””Qualquer
um que omitir um destes três,falha em glorificar a Deus de um modo
perfeito,pois é por meio desta Trindade(TriadoV)que o Pai é glorificado.Sendo o
último teólogo de peso a escrever em grego e não em latim,Hipólito merece um
destaque por ter sido,nas palavras de W.Walker,um dos primeiros antipapas da
história.Ele foi veemente em sua oposição a Calixto,bispo de Roma,que já
naqueles idos pretendia a centralização do poder.Calixto chegou a disciplinar Hipólito por sua teologia acerca do
Logos divino,o que demonstra que seus
conceitos trinitarianos provinham de sua consciência,e não de uma imposição
arbitrária do bispo de Roma.Cipriano(250
d.C),que também cita como válida a fórmula batismal mateana,explicando que
ele o evangelista,sugere aqui a Trindade,na qual as nações foram batizadas.
O
QUE ACONTECEU EM NICÉIA?
Por
volta de 325 d.C,a Igreja estava dividida por polêmica teológica
iniciada no Egito.Um grupo liderado por
Ário e Eusébio de Nicomédia,ensinava que Cristo era um semi-deus
semelhante,porém não totalmente igual,ao Pai.Outro,liderado por
Alexandre,ex-bispo de Ário,e por Atanásio,via nisto uma aproximação muito
perigosa com o gnosticismo divulgado no Egito.Eles lembravam que a confissão
mais antiga dos cristãos dizia que Cristo está em pé de igualdade com o Pai,já
um terceiro grupo liderado por Eusébio de Cesaréia(um adulador de
Constantino)via neutralidade a questão,e preferia propor com urgência uma
declaração que abarcasse os dois lados.O que era para ser apenas uma abordagem
da fé para o mundo Greco-romano tornou-se uma sobreposição do helenismo sobre a
teologia cristã.Embevecidos pela cultura grega,Ário e seus discípulos não
conseguiram escapar à sedução da filosofia gnóstica tão disseminada entre os
alexandrinos,para estes,o maior problema da existência humana estava no
dualismo idealizado por Platão e aprofundado por correntes posteriores.Era um
pressuposto inquestionável acreditar que o espírito(naturalmente bom)e a
matéria(naturalmente má)jamais coexistiam em sintonia.Se assim o fosse,o
primeiro seria contaminado pelo último.Portanto,o desafio agora era adequar
doutrinas judaico-cristãs a este universo de ideias que não admitia a matéria
como criação direta de um Deus-Espírito,nem a encarnação como uma realidade
tangível.Se Deus houvesse criado o mundo ou se encarnado de verdade,sua
divindade estaria seriamente comprometida-pensavam os gnósticos.Assim,modelos
alternativos foram criados para acomodar a doutrina cristã a este padrão
filosófico,um destes pode ser visto nos manuscritos “COPTAS SAHIDICO”,encontrado por James Bruce,em 1769.Para resolver
o problema da existência da matéria que não poderia ser atribuída a um
Deus-Espírito,eles diziam que o Altíssimo criou um deus menor que exerceu o
papel de artífice(demiurgo)para a criação do mundo.Assim,a matéria veio à
existência sem que Deus se contaminasse criando-a diretamente com as
mãos.Cristo era este artífice que hoje se faz presente no mundo através do
espírito(pneuma)que é sua energia impessoal.O conhecimento disto(gnosiV)é o que
salva a humanidade.
CONVOCAÇÃO
CONCILIAR
Enquanto o cristianismo
apostólico era a democratização do mistério de Deus-conceito herdado do
judaísmo-o gnosticismo era a sofisticação do mistério,pois o seu entendimento
não advinha de uma revelação mas da compreensão racional dos iniciados que não
tinham dificuldades intelectuais para explicá-lo.Para eles,o que fugia à
compreensão racional não era doutrina de Deus e isso estava causando uma
preocupante divisão no cristianismo do Egito e de Antioquia(cidade natal de
Ário).Por isso,Alexandre e Atanásio escreveram cartas a Roma pedindo um encontro que pusesse termo
à questão,Eusébio e seus seguidores também queriam a todo custo pôr fim à
disputa,não porque estivessem preocupados com a ortodoxia da doutrina,mas
porque temiam que uma divisão,àquela altura dos acontecimentos,fizesse a Igreja
perder os privilégios que Constantino estava promovendo.O próprio imperador,ao contrário do que muitos pensam,não tinha
interesse algum em promulgar uma doutrina trinitária para a
igreja.Bastava-lhe repetir o ato de quatro anos antes,assinar o edito ordenando
a todos que adorassem ao Deus-Triúno,ademais,Constantino nem possuía
conhecimento suficiente para se posicionar diante da controvérsia que ocupava a
teologia grega.Uma carta por ele enviada
por meio do bispo Hósio de Córdova confirma seu desconhecimento doutrinário a
este respeito.Ali ele afirma que o problema que os bispos estavam discutindo
acerca da natureza de Cristo era uma questão sem proveito.Foram os próprios
bispos que o convenceram a convocar o Concílio para resolver a questão, e o
partido trinitariano de Alexandre,era sem dúvida,o mais fraco de todos.O mais
surpreendente é que,protegido pelo imperador,Ário começou de fato,a
reconquistar seu poder que perdera e a influenciar a política da
Igreja.Eusébio,por sua vez,convenceu Constantino a enviar Atanásio para o
desterro e recolocar Ário em seu lugar como bispo de Alexandria-o que quase aconteceu,não fosse o falecimento de
Ário na noite anterior à cerimônia de sua envestidura,em 336 d.C.Assim o
plano era que o imperador convocasse um novo Concílio corrigindo Nicéia e desse
ganho de causa aos arianos.Sob tais circunstâncias,a fé trinitária parecia,se
não oficialmente renegada,praticamente condenada,principalmente depois que
Constantino declarou seu desejo de ser batizado por Eusébio de Nicomédia num
ritual antitrinitariano.A chamada fé
nicena só chegou ao fim,porque Constantino acabou morrendo em 22 de maio 337,poucos
dias depois de ser batizado.Dois últimos aspectos ainda precisam ser
esclarecidos:A grande discusssão do
Concílio de Nicéia não era a Trindade em primeiro lugar,mas a natureza de Cristo
em relação ao Pai,além disto,é importante notar que o credo niceno não diz nada quanto ao Espírito Santo ser ou não ser uma pessoa.A literatura antitrinitariana se
confunde na sequência histórica apresentando como Credo Ciceno o que na verdade seria o Credo Niceno-Constantinopolitano de 381,proclamado depois da morte de
Constantino.
CONCLUSÃO
Contudo,vê-se
infundada a declaração de que Constantino seria o pai da doutrina
trinitária usada para atrair o politeísmo para a Igreja;pelo contrário,vinha de Ário e Eusébio a tentativa de trazer
uma doutrina politeísta para dentro do cristianismo,pois estes apresentavam a
Cristo como um”segundo deus”menor que o Pai,mas igualmente divino e que se
assemelhava muito ao “demiurgo”.Em Nicéia,em todo o caso,a Igreja pelo menos não
tentou penetrar o mistério de Deus ou descrevê-lo como o fez Ário,imbuído pela
ideia de transcendência vinda da filosofia grega.Esta foi a verdadeira natureza da discussão que de modo nenhum pode ser
tomada como a genitora de uma teologia trinitária.
NOTA:
-Uma reprodução da carta de
Constantino pode ser encontrada em Eusébio de Cesaréia,Vida de
Constantino,II,64-72
-Ário era de Alexandria,pensador
e escritor do início do quarto século d.C,o qual negava a eterna preexistência
de Jesus Cristo.”Houve um tempo em que Jesus não existiu”,foi a clássica
declaração de Ário.Em outras palavras,Ário e seus seguidores sustentavam que
Cristo não existia antes de o pai trazê-lo à existência.Os arianos também tem
negado regularmente a personalidade do Espírito Santo.
Fonte:
Seminário Adventista
Latino-Americano De Teologia,Brasil.Artigo do Doutor em Teologia:Rodrigo
P.Silva,na Revista Parousia.
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