quarta-feira, 30 de abril de 2014

TRINDADE:UM DOGMA DE CONSTANTINO?


Grupos antitrinitarianos dissidentes do adventismo tem alegado que a doutrina foi formulada no Concílio de Nicéia(325 d.C.),sob influência do imperador romano Constantino.Entre os vários ataques produzidos por movimentos antitrinitarianos está o argumento histórico de que a Trindade é fruto do Concílio de Nicéia e constitui,portanto um dogma de Constantino.Tal alegação pode ser encontrada tanto em sites da Internet quanto nos materiais publicados por grupos dissidentes do adventismo.Em matéria veiculada pelo site www.adventistas.com(que não é da Igreja adventista)Ennis Meier declarou que o Concílio de Nicéia deu origem à crença em três deuses.A crença na Trindade de pessoas Divinas não teve origem na Bíblia,o primeiro concílio ecumênico da história,no qual participaram 318 bispos no ano 325 d.C da era cristã.Constantino não foi um Papa,mesmo que tenha agido como líder da Igreja,nalgum momento nunca arvorou para si o título de Pontífex Maximus do cristianismo.Ademais,o bispo de Roma não possuía no quarto século o poder político absolutista que faria do papado a maior autoridade no mundo ocidental.Logo,seria estranho vincular Constantino como Pontífex Maximo.Há também outro site que promove ateísmo,outro escritor que se denomina “irmão X”também se valeu da contundente afirmação de que Constantino começa a criação da Trindade.Ele ainda acrescenta que o voto dos bispos a favor da posição trinitariana se deu por pressão do Imperador,que precisava do respaldo conciliar.Ora,o estranho é que Constantino não se valia de votos para fazer cumprir seus desígnios,apenas expedia um decreto(como o fez no edito de Milão e  no decreto dominical,07/03/321),e todos se sujeitavam.Por que então,no caso da Trindade,dependeria do apoio episcopal da Igreja?Esta questão não parece ter sido avaliada por nenhum dos artigos até agora apresentados.E no site “irmão X” ele cita que foi no ano 325 que fora instituído a guarda do domingo,ele comete um erro de natureza histórica ao vincular o domingo ao Concílio de Nicéia-pois é sabido que o decreto dominical de Constantino  data  quatro anos antes do Concílio(321 d.C),e sua conclusão deve ser bem analisada para ser bem compreendida.Para ele,uma vez que Constantino convocou a reunião,conclui-se que o mesmo homem que promulgou a primeira lei dominical foi o pai do dogma da Trindade.O objetivo desse artigo,é avaliar a procedência histórica de tal afirmação,ou seja,seria a Trindade um dogma de Constantino?Suas origens se devem ao Concílio de Nicéia?Para responder a estas perguntas,é necessário que percorramos aos escritos dos primeiros pensadores cristãos que viveram entre o segundo e o terceiro século,isto é,imediatamente depois do período apostólico e antes do Concílio de Nicéia.
USO DO TERMO TRINDADE ANTES DE NICÉIA
Uma verificação no Index da Ante-Nicene Fathers e da Sources Chrétiennes que formam a coleção de todos os escritores cristãos mais antigos(inclusive os anteriores a Nicéia)nos mostra que muito antes do Concílio,a crença na Trindade já havia sido sistematizada entre os cristãos.Aliás,o próprio termo latino Trindade foi usado em 212 d.C,por Tertuliano,113 anos antes de Nicéia!Falando da Igreja de Deus,ele menciona o Espírito no qual está a Trindade de uma Divindade:Pai,Filho e Espírito Santo(in quo est trinitas unius diuinitaris,Pater ET Filius ET Spiritus sanctus).A tradução latina da obra de Orígenes também menciona o termo ao considerar que o batismo de salvação não está completo a não ser que seja exercida pela autoridade da excelentíssima Trindade de todos eles,que é constituída do Pai,do Filho e do Espírito Santo.Tal comentário torna-se relevante se entendermos que,talvez já nesse tempo,houvesse alguma controvérsia quanto à fórmula batismal e a genuinidade de Mateus 28:19.Teófilo escrevendo quase meio século antes de Tertuliano e Orígenes,usa a expressão “TriadoV”,que certamente seria uma equivalência semântica de trinitas ou original em grego.Note a comparação poética que ele usa ao relacionar a Trindade ao primeiro capítulo de Gênesis:Os três dias que estão antes dos luminares(da criação)são tipos da Trindade(TriadoV)de Deus.Levando-se em consideração que Teófilo fala de tipos da Trindade,é razoável supor que ele não esteja falando de algo novo ou criando um neologismo(palavra,ou expressão nova).A expressão textual supõe o uso de um termo já conhecido entre os leitores.Logo,não seria estranho imaginar que o mesmo vocábulo aparecesse em outros escritos do mesmo período que se encontram perdidos em nossos dias.Assim,retrocede para cerca de um século e meio antes de Nicéia o uso técnico do termo Trindade,legitimamente reconhecido na literatura cristã.Mas talvez alguém pergunte:Por que esse termo não aparece na Bíblia?Para responder a esta questão é preciso compreender que a partir do século segundo,o centro missiológico da Igreja, transferiu-se em definitivo  do ambiente judeu-palestino para o mundo Greco-romano.A Igreja viu-se,então,obrigada a expressar sua fé de um modo compreensível para aqueles que não vinham de uma cultura vétero-testamentária,mas tinham seu pensamento regido pelos conceitos da filosofia grega.Questão ontológicas antes não sistematizadas começaram a invadir os círculos cristãos,e deste modo,os escritores tiveram de cunhar termos helenísticos para tornar inteligível a fé do Novo testamento.
CONCEITOS PATRÍSTICOS SOBRE A TRINDADE
Clemente de Roma,que viveu no fim do primeiro século,escreveu por volta do ano 96 d.C,uma carta de conforto aos cristãos de Corinto,que estavam sendo perseguidos por Domiciano.Ao falar da união da Igreja ele diz:”Não temos todos nós um único Deus e um único Cristo?E não há um único Espírito da Graça derramado sobre nós?Embora este não seja um texto de defesa da Trindade,chama-nos a atenção sua linguagem trinitariana que subentende uma ideia triúna de Deus.Outros autores são mais claros em sua exposição.Inácio(105 d.C),que foi o segundo sucessor de Pedro como pastor em Antioquia,também ensinava a doutrina da Trindade.Nessa época existiam pessoas ensinando doutrinas contrárias à fé dos apóstolos,entre seus ensinos equivocados estaria a ideia de que o Espírito Santo não existe e que o Pai,o Filho e o Espírito Santo seriam a mesma pessoa.Justino,congnominado o “Martir”,foi outro que escreveu várias apologias em favor do cristianismo e contra a supremacia da filosofia grega.Num de seus textos,concluído por volta de 160 d.C,ele diz:Já  que somos considerados ateus ,nós admitimos nosso ateísmo em relação a estes(vários tipos de deuses do politeísmo),mas no que diz respeito ao verdadeiro Deus,o Pai da Justiça e temperança,ao Filho e ao Espírito Profético (Santo),saibam que nós os adoramos e reverenciamos.Atenágoras,também respondendo à acusação de serem os cristãos chamados de ateus por não aceitarem o politeísmo pagão,escreveu em 175 d.C:”Ora,quem não ficaria perplexo em ouvir chamar de ateus pessoas que pregam de Deus o Pai,de Deus o Filho e do Espírito santo e que declaram serem um no poder,mas distintos na ordem?Irineu de Lion é outro importante autor deste período,convertido na adolescência,ele foi discípulo de Policarpo,que por sua vez,foi discípulo do apóstolo João.Sua principal obra,intitulada Contra Heresias”,dispõe de cinco volumes e foi escrita por volta de 177 d.C.Respondendo às ideias gnósticas de seu tempo,ele toma o cuidado de diferenciar,por exemplo,o fôlego (espírito)de vida dados às criaturas em geral,do Espírito Santo,que é Deus habitando com o crente.Hipólito(205 d.C),autor do mais antigo comentário de Daniel de que dispomos,disse que a terra é movida por estes três:”O Pai, o Filho e o Espírito santo”.Noutra passagem,após citar a fórmula batismal em nome do Pai,do filho e do Espírito Santo,ele demonstra que já no seu tempo havia os que negavam esta doutrina,pois diz:””Qualquer um que omitir um destes três,falha em glorificar a Deus de um modo perfeito,pois é por meio desta Trindade(TriadoV)que o Pai é glorificado.Sendo o último teólogo de peso a escrever em grego e não em latim,Hipólito merece um destaque por ter sido,nas palavras de W.Walker,um dos primeiros antipapas da história.Ele foi veemente em sua oposição a Calixto,bispo de Roma,que já naqueles idos pretendia a centralização do poder.Calixto chegou a disciplinar Hipólito por sua teologia acerca do Logos divino,o que demonstra que seus conceitos trinitarianos provinham de sua consciência,e não de uma imposição arbitrária do bispo de Roma.Cipriano(250 d.C),que também cita como válida a fórmula batismal mateana,explicando que ele o evangelista,sugere aqui a Trindade,na qual as nações foram batizadas.
O QUE ACONTECEU EM NICÉIA?
Por volta de 325 d.C,a Igreja estava dividida por polêmica teológica iniciada no Egito.Um grupo liderado por Ário e Eusébio de Nicomédia,ensinava que Cristo era um semi-deus semelhante,porém não totalmente igual,ao Pai.Outro,liderado por Alexandre,ex-bispo de Ário,e por Atanásio,via nisto uma aproximação muito perigosa com o gnosticismo divulgado no Egito.Eles lembravam que a confissão mais antiga dos cristãos dizia que Cristo está em pé de igualdade com o Pai,já um terceiro grupo liderado por Eusébio de Cesaréia(um adulador de Constantino)via neutralidade a questão,e preferia propor com urgência uma declaração que abarcasse os dois lados.O que era para ser apenas uma abordagem da fé para o mundo Greco-romano tornou-se uma sobreposição do helenismo sobre a teologia cristã.Embevecidos pela cultura grega,Ário e seus discípulos não conseguiram escapar à sedução da filosofia gnóstica tão disseminada entre os alexandrinos,para estes,o maior problema da existência humana estava no dualismo idealizado por Platão e aprofundado por correntes posteriores.Era um pressuposto inquestionável acreditar que o espírito(naturalmente bom)e a matéria(naturalmente má)jamais coexistiam em sintonia.Se assim o fosse,o primeiro seria contaminado pelo último.Portanto,o desafio agora era adequar doutrinas judaico-cristãs a este universo de ideias que não admitia a matéria como criação direta de um Deus-Espírito,nem a encarnação como uma realidade tangível.Se Deus houvesse criado o mundo ou se encarnado de verdade,sua divindade estaria seriamente comprometida-pensavam os gnósticos.Assim,modelos alternativos foram criados para acomodar a doutrina cristã a este padrão filosófico,um destes pode ser visto nos manuscritos “COPTAS SAHIDICO”,encontrado por James Bruce,em 1769.Para resolver o problema da existência da matéria que não poderia ser atribuída a um Deus-Espírito,eles diziam que o Altíssimo criou um deus menor que exerceu o papel de artífice(demiurgo)para a criação do mundo.Assim,a matéria veio à existência sem que Deus se contaminasse criando-a diretamente com as mãos.Cristo era este artífice que hoje se faz presente no mundo através do espírito(pneuma)que é sua energia impessoal.O conhecimento disto(gnosiV)é o que salva a humanidade.

CONVOCAÇÃO CONCILIAR

Enquanto o cristianismo apostólico era a democratização do mistério de Deus-conceito herdado do judaísmo-o gnosticismo era a sofisticação do mistério,pois o seu entendimento não advinha de uma revelação mas da compreensão racional dos iniciados que não tinham dificuldades intelectuais para explicá-lo.Para eles,o que fugia à compreensão racional não era doutrina de Deus e isso estava causando uma preocupante divisão no cristianismo do Egito e de Antioquia(cidade natal de Ário).Por isso,Alexandre e Atanásio escreveram cartas  a Roma pedindo um encontro que pusesse termo à questão,Eusébio e seus seguidores também queriam a todo custo pôr fim à disputa,não porque estivessem preocupados com a ortodoxia da doutrina,mas porque temiam que uma divisão,àquela altura dos acontecimentos,fizesse a Igreja perder os privilégios que Constantino estava promovendo.O próprio imperador,ao contrário do que muitos pensam,não tinha interesse algum em promulgar uma doutrina trinitária para a igreja.Bastava-lhe repetir o ato de quatro anos antes,assinar o edito ordenando a todos que adorassem ao Deus-Triúno,ademais,Constantino nem possuía conhecimento suficiente para se posicionar diante da controvérsia que ocupava a teologia grega.Uma carta por ele enviada por meio do bispo Hósio de Córdova confirma seu desconhecimento doutrinário a este respeito.Ali ele afirma que o problema que os bispos estavam discutindo acerca da natureza de Cristo era uma questão sem proveito.Foram os próprios bispos que o convenceram a convocar o Concílio para resolver a questão, e o partido trinitariano de Alexandre,era sem dúvida,o mais fraco de todos.O mais surpreendente é que,protegido pelo imperador,Ário começou de fato,a reconquistar seu poder que perdera e a influenciar a política da Igreja.Eusébio,por sua vez,convenceu Constantino a enviar Atanásio para o desterro e recolocar Ário em seu lugar como bispo de Alexandria-o que quase aconteceu,não fosse o falecimento de Ário na noite anterior à cerimônia de sua envestidura,em 336 d.C.Assim o plano era que o imperador convocasse um novo Concílio corrigindo Nicéia e desse ganho de causa aos arianos.Sob tais circunstâncias,a fé trinitária parecia,se não oficialmente renegada,praticamente condenada,principalmente depois que Constantino declarou seu desejo de ser batizado por Eusébio de Nicomédia num ritual antitrinitariano.A chamada fé nicena só chegou ao fim,porque Constantino acabou morrendo em 22 de maio 337,poucos dias depois de ser batizado.Dois últimos aspectos ainda precisam ser esclarecidos:A grande discusssão do Concílio de Nicéia não era a Trindade em primeiro lugar,mas a natureza de Cristo em relação ao Pai,além disto,é importante notar que o credo niceno não diz nada quanto ao Espírito Santo ser ou não ser uma pessoa.A literatura antitrinitariana se confunde na sequência histórica apresentando como Credo Ciceno o que na verdade seria o Credo Niceno-Constantinopolitano de 381,proclamado depois da morte de Constantino.
CONCLUSÃO
Contudo,vê-se infundada a declaração de que Constantino seria o pai da doutrina trinitária usada para atrair o politeísmo para a Igreja;pelo contrário,vinha de Ário e Eusébio a tentativa de trazer uma doutrina politeísta para dentro do cristianismo,pois estes apresentavam a Cristo como um”segundo deus”menor que o Pai,mas igualmente divino e que se assemelhava muito ao “demiurgo”.Em Nicéia,em todo o caso,a Igreja pelo menos não tentou penetrar o mistério de Deus ou descrevê-lo como o fez Ário,imbuído pela ideia de transcendência vinda da filosofia grega.Esta foi a verdadeira natureza da discussão que de modo nenhum pode ser tomada como a genitora de uma teologia trinitária.

NOTA:
-Uma reprodução da carta de Constantino pode ser encontrada em Eusébio de Cesaréia,Vida de Constantino,II,64-72
-Ário era de Alexandria,pensador e escritor do início do quarto século d.C,o qual negava a eterna preexistência de Jesus Cristo.”Houve um tempo em que Jesus não existiu”,foi a clássica declaração de Ário.Em outras palavras,Ário e seus seguidores sustentavam que Cristo não existia antes de o pai trazê-lo à existência.Os arianos também tem negado regularmente a personalidade do Espírito Santo.

Fonte:

Seminário Adventista Latino-Americano De Teologia,Brasil.Artigo do Doutor em Teologia:Rodrigo P.Silva,na Revista Parousia.

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